Por João Guisan Seixas
É famosa aquela frase do génio diletante Valle-Inclán em que, por boca do Marquês de Bradomim, na “Sonata de Inverno”, explica o seu apoio a uma causa tão retrógrada como o carlismo: “O carlismo tem para mim o encanto solene das grandes catedrais”. Eu, que só posso comparar-me com Valle no culto à beleza, nem por isso aderiria, porém, a uma causa por mero esteticismo. A estética tem para mim também a sua ética, e a ética a sua estética. Pode que as diferenças venham de um matiz linguístico. Sempre gostei dessa polissemia da palavra “belo” (ausente no castelhano “bello”), que em português, como em francês ou italiano, tem o valor de “lindo, formoso”, mas também o de “bom”: “Um belo rapaz”, “Un beau morceau” ou “Un bel giorno” podem-se traduzir para castelhano como “Un buen chico”, “Un buen cacho” e “Un buen día”.
Como não posso competir com Valle em genialidade e em diletantismo, também não vou competir no tamanho da sua comparação. Se começo a glosar essa frase é precisamente para poder esclarecer que, se alinho com a causa do sionismo, é porque, muito pelo contrário, Israel tem para mim o encanto humilde das pequenas sinagogas.
Costuma contrapor-se a magnificência das fachadas das catedrais católicas com a austeridade externa das mesquitas, cujos motivos decorativos reservam-se quase exclusivamente para o interior. Deduz-se dai uma maior preocupação pela aparência e o aparato no cristianismo e um crença mais íntima e profunda no islamismo. São simplificações que se repetem, um pouco porque são fáceis a fazer, e também um pouco por esse masoquismo ideológico que caracteriza o pensamento ocidental destas últimas décadas. Algumas catedrais católicas apresentam também uma profusa decoração interior, e há mesquitas monumentais cuja austeridade externa receio que não pretenda senão impressionar, por não dizer “gelar”, o espírito de quem as olha.
Porque há uma característica comum a catedrais e mesquitas: a sua grandiosidade. Umas e outras pretendem sem dúvida impor-nos a sua presença, constranger-nos de algum modo, demonstrar-nos a nossa pequenez. As sinagogas, porém, é preciso buscá-las. Lembro o meu desconcerto uma tarde, no “Ghetto Nuovo” de Veneza, à procura da “Scuola Spagnola” e outras sinagogas que apareciam no meu guia, que resultaram ser todas casinhas bem humildes, apertadamente embutidas na massa de edifícios anónimos. Lembro também a asseada modéstia das pequenas sinagogas de Safed, a cidade mística da Galileia. E, a pesar de mística, lembro especialmente aquelas sinagogas, não só pelo seu ar doméstico, pela sua luminosidade directa e nada pretensiosa, mas também por alguns traços “heréticos”. Pecadoras sinagogas de Safed, como a Ari Shepharadi ou a de Joseph Caro, que, indiferentes à atmosfera opressivamente ortodoxa da vila, exibem sem pudor imagens de leões na porta e delicadas ornamentações de pássaros no interior, apesar de a Torá proibir expressamente a representação de seres animados, perniciosa idolatria!
Se os interiores das catedrais e mesquitas têm qualquer coisa de enormes vestíbulos de palácios imperiais, os interiores das sinagogas só conseguem lembrar bibliotecas, salas de tribunal, ou mesmo estações dos correios. Naquelas a gente tem a sensação de estar sempre à espera de um grande senhor, muito atarefado, que nunca chega e tem sempre que falar através de algum mordomo de longas vestes, mas nestas sente-se que é possível o convívio quotidiano com um deus com boca de livro que se preocupa de coisas tão domésticas como a forma correcta de fazer o pão ou de tecer um corte de pano. Talvez no início, na época do Templo, o judaísmo não fosse muito diferente dos seus filhos, cristianismo e islamismo. A maior vantagem para o desenvolvimento do humanismo judeu (a primeira forma de humanismo) foi um facto que na teologia judia não deixa de viver-se como uma carência: desde a destruição do Templo (no judaísmo há um único templo possível: o de Jerusalém) pelo imperador Tito (em 70 d.C.) o judaísmo tem de sofrer, como o povo que o sustenta, um exílio, condenado a ser uma religião sem templo nem sacerdotes. Uma sinagoga não é um templo (“Sinagoga” significa “lugar de reunião”) e os rabinos são antes juízes ou conselheiros do que sacerdotes (no sentido que podem ter um padre católico ou um íman muçulmano).
Daí que a principal diferença entre umas e outras, se veja reflectida na colocação dos fiéis. Nas igrejas e mesquitas todos olham para um mesmo ponto, donde fala o mediador entre deus e os homens. Nas sinagogas, porém, (mesmos nalgumas mais monumentais e mais parecidas com catedrais ou com mesquitas, como a “Esnoga” ou “Sinagoga Portuguesa” de Amesterdão) os bancos “olham” uns para os outros. A comunidade olha-se a si própria. É ela a mediadora e a protagonista. Um padre católico pode dizer missa sozinho, numa manhã de Inverno, numa capela perdida nas montanhas, como na lenda do Santo Grial do Cebreiro. Um único muçulmano pode estender a sua esteira em direcção à Meca no meio do deserto. Um judeu não pode celebrar os seus rituais se não for acompanhado de mais nove.
Um Verão em que aluguei um apartamento no porto de Rianjo, gostava de escrever à noitinha, ao pé da janela, a olhar aquele recanto íntimo da ria e a ouvir música. Na Rádio Dois davam, então, àquela hora, as Cantatas de Bach todas as tardes, num programa monográfico. E para maior deleite, calhava ser também a hora em que a traineira da vila costumava sulcar, todos os dias, as águas daquele salão dourado do mar de Arousa, a praticar para as próximas regatas. E a minha mente divagava por coisas bastante diferentes daquilo que escrevia. Achava um paralelismo insuspeito entre as bocas do coro a cantarem, e os braços dos marinheiros a remarem. O coro navegava através das ondas da música, e a traineira era um coro de longas línguas de madeira a cantarem golpes rítmicos contra um lábio de água. E de repente tinha a ideia de que os remadores não deviam ser senão acólitos de uma nova religiom, e que no seu vergar rítmico adoravam, sem saberem, aquela música que caia do alto, como o Sol que se punha, e o próprio Sol que antes de morrer brilhava dourando as águas como o retábulo de um templo que não podia fazer mais que esvair-se.
Vêm-me à cabeça estas imagens, porque aquela “emoção coral” me lembrava outra “emoção coral” que já tinha sentido antes, e então tornei-me consciente de que sempre o que mais me tinha emocionado da gesta da criação do Estado de Israel, era que se tratava de uma epopeia colectiva (Eis como funciona, ou como não funciona, a minha mente. Eu só sei fazer associações deste género: “cantata + marinheiros = Israel”. O meu cérebro está estruturado desse modo, entendam-no, e assim me vai). A criação do Estado de Israel tem também os seus heróis individuais, sem dúvida, mas qualquer deles empalidece ao lado do heroísmo colectivo. Não me dêem nem o melhor tenor, nem barítono, nem contralto, nem soprano. De que me vale a mim uma voz que chegue às alturas do dó de peito ou ainda mais alto? Nada pode comparar-se à emoção do murmúrio de um coro, ao chapinhar harmónico de um povo que rema.
Sempre que posso aproveito para reivindicar a figura de Bernard Lazare, um escritor francês, judeu, anarquista e ateu. Ele, para além de anarquista, foi um dos mais interessantes, para mim, pioneiros do sionismo. Como afinal o sionismo não deixa de ser uma forma de nacionalismo, Bernard Lazare, a tentar conciliar o seu nacionalismo sionista com o seu internacionalismo anarquista, formulou uma das ideias mais profundas e formosas que se têm dito a respeito. Convém lembrá-la nesta época de nacionalismos essencialistas (tanto faz se baseados na Espanha do Cid como no “fogar de Breogán”). Ele não acreditava em toda essa retórica reaccionária dos “direitos históricos”. Ele dizia que o direito de um povo a existir (enquanto povo, enquanto nacionalidade, não no sentido biológico do direito a viver de um conjunto de indivíduos, entenda-se) não era um direito “natural” ou “divino”. Era um direito que havia que ganhar, e para um povo ter direito a existir, a ser reconhecido como tal pelos outros povos, tinha que contribuir com a sua existência de alguma maneira ao conjunto da humanidade. Tinha que fornecer algum valor novo ao próprio conceito de humanidade, tinha que ser capaz de alargar, com a sua presença, o conceito de humanidade. E, nesse sentido, dizia, o povo judeu era sem dúvida o que mais tinha direito a existir, porque ele tinha encarnado, como nenhum outro, precisamente pelo seu historial de sofrimento, pela sua fraqueza e todas as suas desfeitas, o ser mais íntimo da espécie humana.
O ser humano é o judeu dos seres vivos. Somos migrantes por natureza. Nenhum lugar da Terra e todos, ao mesmo tempo, nos pertencem. Como dizia Rosalia de Castela, mas alargando-o ao mundo inteiro: tudo nos diz “estrangeiro”. Quem nunca se tenha sentido estrangeiro, nunca se tem sentido humano. É a fragilidade e a carência o que nos torna humanos. E precisamente uma das preocupações das leis anti-semitas era impedir os judeus de acederem à propriedade. Os judeus encarnam, daí, a raiz mais profunda da condição humana.
O primeiro primata foi um judeu para os carnívoros, mas hoje somos nós que controlamos a população de tigres do planeta. Resulta irónico que o povo mais perseguido da história tenha conseguido tornar-se no povo mais brilhante que deu a humanidade. Os babilónios, os egípcios, os gregos, os romanos, na antiguidade, os árabes na idade média, os europeus na idade moderna, os americanos na actualidade... todos tiveram o seu momento de brilho deslumbrante. Mas nenhum deles pode comparar-se com um outro brilho, talvez mais modesto mas constante, que de Salomão aos prémios Nobel deste ano, foi acompanhando o brilhar de todos eles. O de um pequeno povo, sempre minoria, sempre ameaçado, mas sempre movido por um amor inquebrantável à vida, por um instinto furioso de sobrevivência: os judeus.
Quando fazia parte da Protectora de Animais de Santiago, e comecei a passar algumas horas, aos fins de semana, a colaborar na manutenção do canil da associação, lá na Boisaca, fiquei arrepiado, ao conhecer, logo nos primeiros dias, um comportamento típico dos cães quando estabelecem entre si relações de “clã”: o de escolherem um do grupo, normalmente o mais pequeno ou o mais enfraquecido, e todos começarem a abusar dele. A postergá-lo à hora das refeições, a agredir-lhe e isolá-lo. Não há razão objectiva alguma para a eleição, tirando a relativa ao tamanho e força (reduzidos) da vítima. Mas podia ter sido um ou outro de iguais características. O facto de ter sido maltratado por um, é que o torna passível de ser maltratado por todos. A chave parece estar em ter um inimigo comum. Isso deve supor alguma vantagem evolutiva. Nada é capaz de unir tanto como o desejo de tornar difícil a vida a um semelhante.
Este comportamento, levado à espécie humana, deve estar na base mental (límbica, no “cérebro primitivo”) do nazismo e do anti-semitismo. O povo judeu é esse cão escolhido pelos seus congéneres num canil chamado Terra e num canil chamado História. Primeiro o antigo Egito e o Império Babilónico, depois o Império Romano, depois todos os impérios cristãos da idade média, mais tarde o Império Czarista e mais recentemente o Terceiro Reich, e outros imperialismos da mesma laia, como o pan-arabismo e pan-islamismo... Os primeiros porque sim, e os seguintes porque já estava marcado, todos esses grandes cães raivosos foram deixando memória dos seus dentes no corpo diminuto deste povo.
A diferença entre os cães e os homens é que, nesses casos, o cão escolhido acaba por aceitar a sua sorte, e costuma deixar-se morrer a um canto do canil, enquanto os homens, alguns homens, revoltam-se e por vezes conseguem renascer das suas cinzas e reafirmar a sua dignidade. A criação do Estado de Israel representa o momento em que o cão tinhoso se levanta nas suas patas traseiras, consegue fazer-se ouvir no meio da manada e ensina os dentes como garantia processual dos seus direitos. É por isso que, seguindo a preciosa teoria de Bernard Lazare, o Estado de Israel não só tem direito a existir tanto como qualquer outro Estado. Para mim é sem dúvida o Estado que tem mais direito a existir. Porque a sua existência nos diz a toda a humanidade que a nossa espécie é capaz de tomar as rédeas do seu próprio destino, que é capaz de ultrapassar todos os determinismos, de vencer a humilhação e de mudar a História, de mudar qualquer história cujo final parece já escrito desde o início.
Gosto de Israel, como das sinagogas de Safed, pelo sentido herético que tem. Para limpar a sua consciência do seu cobarde papel no conflito de Oriente Médio, na Europa tende-se a estabelecer paralelismos entre as partes, acusando o sionismo de ser o correlato do integrismo religioso islâmico. E nada mais longe da realidade. O sionismo é uma blasfémia do ponto de vista do judaísmo ortodoxo, e daí que tradicionalmente este se tenha oposto sempre a ele. A criação do Estado de Israel supõe que um povo que levava cinco mil anos à espera do Messias, um bom dia resolve não esperar mais as profecias e ser ele o seu próprio Messias. Um povo que se rebela contra o seu próprio deus, ou, se quiserem, contra o destino que ele próprio se tinha marcado.
Cada vez que qualquer de nós está a ser maltratado, discriminado, perseguido, agredido. Cada vez que a turba assinala qualquer de nós com o dedo e a matilha de cães começa a rodeá-lo a arreganhar os dentes, passamos a ser judeus. Cada vez que um de nós é injustamente tratado e encurralado moralmente e, faça o que fizer, é criticado sem saída, cada vez que um de nós é sentenciado de morte sem ter direito nem sequer a ser ouvido, passa a ser judeu, e Israel é então legitimamente a nossa pátria.
Eu gosto de Israel porque muitas vezes me tenho sentido Israel na vida. Como escritor lusista, como pai separado, como tantas coisas... Cada vez que vês como o mundo te fecha as portas e decide ir por ti, simplesmente por seres aquilo que és, como podes não sentir-te identificado com Israel? Quando te negam cinicamente a voz e o direito de defesa, como podes não sentir-te identificado com Israel?
O Império romano proibiu os judeus de habitarem os seu próprio país, para, a seguir, censurá-los por apátridas e estrangeirizantes. Na Europa medieval foram proibidos de possuir terras, o que os obrigou a dedicar-se aos ofícios artesanais e liberais, mas afinal deixou-os numa situação invejável quando, com a renascença e o auge das cidades, a posse da terra deixou de ser a principal fonte de riqueza, e então os mesmos que pretenderam empobrecê-los, criticaram-nos por ricos. Como do mesmo versículo (Deuteronómio 23-19: “Não emprestarás com usura ao teu irmão nem dinheiro nem grão”) se tirava a proibição de um judeu emprestar dinheiro com juros a um judeu, e um cristão a um cristão, mas não um judeu a um cristão ou vice-versa (ou pelo menos assim o interpretaram uns e outros na Idade Média, considerando que a referência ao “irmão” só podia querer dizer “o irmão na fé”), sendo maior o número de cristãos do que o de judeus, estes tiveram muito mais êxito como prestamistas do que aqueles. Mas isso também lhes foi criticado. Mais tarde, a fugirem de pogrons na Europa do Leste, emigraram a América. A Polónia, a Rússia e a Ucrânia não ficaram mais ricas por isso, mas os judeus acabaram por desembarcar, aos milhões, no futuro império do mundo, onde chegaram a ser uma influente minoria. A propaganda anti-semita em todos esses países continua a falar, contudo, do lobby judeu e da sua grande conjura para dominar o mundo. Se os tivessem deixado cultivar batatas em paz no meio das estepes, não se teriam visto obrigados a escalar ao alto das torres de Wall Street para fugirem das hordas cossacas. Sempre que os judeus souberam tirar proveito da sua própria segregação e do seu pequeno tamanho, os mesmos que os obrigavam a obrar desse modo, mais tarde censuravam-nos por o terem feito.
Como se sabe a grande coarctada é dizer que se pode ser contra Israel, mesmo contra a própria existência de Israel, e nem por isso ser anti-semita. Resulta impossível, porém, separar uma e outra coisa. O anti-semitismo é a forma mais estúpida de racismo, porque se todo o racismo pretende basear-se na ideia da superioridade, o anti-semitismo sustenta-se num sentimento de inferioridade. Todos os nacionalismos odeiam os judeus, precisamente porque os judeus inventaram o nacionalismo. Há pouco um estudo que comentava o sentido da expressão “nação de Breogan” no hino galego, fazia-me lembrar uma outra expressão parecida, “nação de Israel”, que aparece na Bíblia, e que é a primeira vez em que se regista o conceito de nação. “Nação de Israel” quer dizer o conjunto dos “nascidos de Israel”, e Israel não é senão a alcunha que se lhe dá a Jacob, e que significa, como se sabe, “Aquele que luta contra Deus”. Israel é um nome próprio de pessoa. A “nação de Israel” é o conjunto teórico dos descendentes de Jacob. É mitologia, claro, pois não é preciso fazer estudos genéticos para intuir que há muitos judeus no mundo que devem partilhar tantos genes com Jacob como com Gengis Khan. Claro que também eu suspeito que um só deles conserva mais genes de Jacob dos que os galegos todos herdámos do ilusório Breogan.
Israel é portanto um nome próprio de pessoa, que passou a ser um nome próprio de um conjunto de pessoas, de um povo. Durante todos os séculos de diáspora os judeus (e não só, muitas fontes cristãs registam o uso) continuaram a chamar-se a si próprios “Israel”, A primeira comunidade judia das Américas, fundada no XVII na cidade brasileira de Recife (na altura sob domínio holandês) por descendentes dos judeus expulsos da península, chamava-se Tzur Yisrael: “Rocha de Israel”. Aquela cidade de língua portuguesa sob domínio holandês e portanto fruindo das suas leis de liberdade de culto (igual que mais tarde aconteceria com Gibraltar sob domínio britânico), podia considerar-se como um rochedo de salvação que aqueles náufragos da história encontravam entre o oceano Atlântico e o oceano de intolerância da sua própria cultura. Quando, novamente expulsos após a reconquista portuguesa da cidade, os sobreviventes conseguem finalmente chegar a participar na criação da colónia holandesa de Nova Amesterdão (que viria a ser, com o correr do tempo, Nova Iorque (1), fundam uma nova comunidade (a primeira da América no Norte) chamada “Shearith Yisrael”, literalmente: “O que fica de Israel”. Não há dúvida que para eles Israel existia e eram eles próprios.
Daí que “Israel” e “povo judeu” sejam perfeitos sinónimos. Aquele “Israel” de antes de Israel era portanto um “Estado nómada”, um Estado sem domínio de facto sobre o seu território. Mas os centímetros quadrados que ocupavam as marcas dos sapatos de cada judeu, era como se fossem um pedaço errante de solo israelita. O único que se fez quando se criou o Estado de Israel, foi recompor o puzzle.
E daí que não seja preciso fazer mais esclarecimentos nem discutir se se deve dizer de uma ou outra forma: “Estado de Israel” já significa, em si, “Estado dos Judeus”, de todos os judeus (e nem por isso deixa de poder ser o Estado de muitas pessoas que o não são). Dizer que se respeita o direito de existir do povo judeu mas que não se reconhece o direito a existir do Estado de Israel é por tanto uma contradição em si própria. Porque o povo judeu é o conjunto das pessoas que levavam 2.000 anos a sonhar com regressar a Israel (que levavam 2.000 anos a dizer “no ano próximo em Jerusalém!”), e negar-lhes a essas pessoas este direito é negar-lhe a esse povo a mesma razão da sua existência.
Que anti-semitismo e anti-sionismo não podem ser senão a mesma coisa, vê-se logo em que a mesma retórica que se emprega para desqualificar o povo judeu é a que se utiliza contra Israel. Israel é o judeu entre as nações. Primeiro pretende-se destrui-lo sem mais. Depois, quando ele se defende, pretende-se destrui-lo pelo delito de ter ganho uma guerra e não se ter deixado aniquilar. Se ocupa militarmente o território inimigo, é hostilizado por ser uma potência ocupante. Se abandona esse território, porém (como já aconteceu com Gaza), continua a ser hostilizado, desde ele, para ocupar o seu próprio território.
Devemos tantas coisas ao povo judeu! A auto-denominada esquerda e os auto-denominados “eco-pacifistas” também, mas costumam ignorá-lo, porque costumam ser bastante ignorantes. Para além da pomba da paz, o ramo de oliveira e o símbolo do arco-íris que hasteiam contra ele, devem-lhe o slogan “Nunca mais!”, tão utilizado aquando do desastre do Prestige. Esse foi o grito fundador de Israel: “Nunca mais!” (ainda que então se pronunciasse “Never more!”). Só que esse “Nunca mais” não ia dirigido contra nenhuma maré negra de petróleo mas contra a maré, bem mais negra, do Holocausto. Esse “Nunca mais” foi proferido por milhões de bocas que tinham ficado sem casas, sem bens e sem país, a vadiarem sem rumo pelos campos destruídos da Europa, e a que o único que lhes restava era a sua mitologia e o seu sonho milenário de regresso. As mitologias nacionais costumam ser penosamente deploráveis, por saudosistas e retrógradas, mas neste caso não o foi precisamente porque tinha toda a força dessa projecção de futuro do grito “Nunca mais!”: Nunca mais seremos exterminados, nunca mais seremos discriminados, teremos o nosso próprio Estado e o nosso próprio exército, não esperaremos nem paz nem compreensão, só confiaremos na nossa própria força e na justiça do nosso empenho.
Eu admiro essa tenacidade, essa firmeza de Israel, essa maravilhosa falta de respeito pelo “politicamente correcto”. Esse jeito de agir, na média exacta entre a humildade e o orgulho. Fazer o que se deve fazer sem procurar o aplauso nem esperar a compreensão do mundo. Como dizia Menachem Begin: “Assegura-te primeiro da justiça da tua causa, e depois sê intransigente”. Tudo isto, mas unido a um sentido do pragmatismo, também na média exacta entre a ética dos princípios e a ética das consequências (Bom, Israel representa, para mim, a média aritmética de tantas coisas! A média exacta entre o místico e o herético, entre o individual e o colectivo, entre o pacifismo e o orgulho pelo seu exército, entre a utopia e o realismo, entre o passado e o futuro... Se a humanidade perder o povo de Israel, perderá o seu diapasão mais temperado).
Eu admiro Israel por essa tenacidade em existir. Essa determinação de não voltar a ser o cão maltratado do canil. Uma revolta permanente pela dignidade e contra o destino. Parece-me uma metáfora da vida (essoutra revolta contra o frio sideral, da matéria e a luz). Mesmo a vida, a matéria orgânica, é um judeu entre a maioria absoluta esmagadora da matéria inanimada, imensamente mais abundante no universo e que parece levar milhões de anos à espera da sua destruição.
O que significa Israel para mim? Israel significa nem mais nem menos “a possibilidade de ser”. A possibilidade de uma faísca chegar a ser lume, de uma ideia chegar a ser realidade, de a vida nos dar o que lhe pedimos, aquilo que se empenha em nos negar, a possibilidade de virar a desgraça em ventura, a doença em saúde, de sermos aquilo que alguma vez nos tínhamos proposto ser.
Todo o ser humano, enquanto indivíduo, é um judeu, porque, enquanto indivíduo, cada um de nós é uma minoria extremamente reduzida. Quem nunca se se sentiu agredido na sua individualidade, talvez não possa entender nunca o Estado de Israel. É o único Estado judeu do mundo, rodeado de um oceano de ódio no mundo árabe e islâmico, e um oceano de incompreensão no mundo ocidental. O povo judeu representa 0,2% da humanidade, mas ostenta 30% dos prémios Nobel. O povo judeu deu à humanidade muito mais do que a humanidade lhe deu a ele. A humanidade só lhe pagou o seu decisivo contributo para o progresso dela, com 2.000 (2.700 se tivermos em conta a primeira diáspora, causada pelos assírios) anos de desterros, massacres e perseguições. A humanidade deve-lhe aos judeus 2.700 anos de paz, no mínimo. Só depois de 2.700 anos de paz é que deveríamos começar a pedir, em justiça, contas a Israel.
O século XX tem visto, entre outras coisas, a queda de todas utopias como tábuas de salvação ou atalhos directos a uma sociedade perfeita. Às utopias da Renascença (as de Moro, Bacon e Campanella) que nos prometiam a felicidade absoluta, sucederam-lhes as utopias como o nazismo, o fascismo, o estalinismo ou os khemer vermelhos, que nos desvelaram o lado mais cruel delas. Todas essas utopias, boas ou más, acabaram por fracassar, contudo. Quis a fortuna, porém, que de todas as utopias que a humanidade foi forjando, apenas uma delas tenha tido êxito e sobreviva. A mais pequena e modesta. O sionismo. Uma utopia que não pretendia remir a humanidade, mas apenas que todos os judeus do mundo tivessem um território em que poder viver livres e seguros.
Se a teoria clássica do Estado justifica o direito que ele se arroga de dispor das vidas e bens dos seus cidadãos, em função de ele garantir a segurança deles (justificação um tanto peregrina, porque, se nos invadem os franceses, por exemplo, depois o Estado francês teria direito a governar-nos, porque nos protege de uma possível invasão alemã, e assim por diante), Israel não só tem direito a existir tanto como qualquer outro Estado. Nem sequer tem direito a existir muito mais do que qualquer outro Estado. É que é, se calhar, o único Estado da Terra que tem direito a existir, porque a vida dos seus cidadãos –ainda que este dado se costume obviar de forma cínica quando se fala do tema– neste caso sim está realmente ameaçada. No caso de Israel não cabe a redução ao absurdo que fazia no último parêntese. De nada lhes valeria aos seus cidadãos saírem com bandeiras palestinianas a receber o invasor. A deles é uma guerra em que não serve a rendição. Porque o que move o outro lado não é o afã de posse de terras ou o de domínio. É pura e simplesmente o ódio. O velho ódio que se vai entrançando na história do homem a adoptar rostos sucessivos, o penúltimo o do nazismo. Esse velho ódio que é um velho conhecido dos judeus.
Uma utopia é no fim de contas um género literário. Só que se tenta escrever sobre a terra em vez de no papel, e não com letras e palavras, mas com as vidas das pessoas. Não deveríamos julgá-las só pela sua beleza, porque estão vidas envolvidas. Por muito que a gesta da criaçom do Estado de Israel fosse formosa, se afinal não tivesse sido boa, moralmente boa, não seria uma “bela” gesta. Se eu pensasse que os judeus desembarcaram militarmente ali e conquistaram a sangue e fogo aquele país, roubando as terras a palestinianos indefesos, a matar crianças porque sim, eu também seria anti-israelita. Mas eu sei que Israel o construíram milhares de judeus pacíficos que foram emigrando (é curioso que aqueles que são contra qualquer restrição à imigração defendam, ao mesmo tempo, que num só lugar da Terra devia estar limitada, e a uma só classe de pessoas: os judeus) desde os finais do século XIX, ao que era então uma província otomana e seria um mandato britânico depois, a fugirem primeiro das perseguições na Rússia Czarista e mais tarde do extermínio nazi, e que foram comprando, com o fruto do seu trabalho, as terras que cultivavam e as casas em que viviam, juntando-se a outros muitos judeus que desde sempre habitaram aquelas terras e que, por exemplo, em Jerusalém sempre foram maioria. Que não arrebataram nem conquistaram nada a ninguém, entre outras coisas porque aquele território já tinha as suas potências coloniais ocupantes. Frente a tantos nacionalismos essencialistas e à retórica vã dos “direitos históricos” (que é também a dalguns grupos minoritários em Israel, mas não a minha), para mim só existe uma fonte legítima para um Estado, como só existe uma fonte legítima para a propriedade: “A terra para quem a trabalha”.
A criação do Estado de Israel é uma gesta colectiva, uma epopeia coral escrita com sangue, suor e lágrimas por milhões de pessoas anónimas que o único que fizeram foi reivindicar o seu lugar na Terra. Israel é para mim uma obra de arte. Um grande poema épico colectivo, formoso e heróico, num século caracterizado por delírios épicos individuais, grandiloquentes e terríveis.
Israel é uma pequena sinagoga entre uma grande mesquita ameaçante e uma grande catedral tremelicosa. E o povo judeu é um resumo da humanidade na sua luta pela dignidade. O que está em jogo não é a sobrevivência de um Estado legítimo. Nem sequer a sobrevivência de 6 milhões de pessoas ameaçadas pelo delito, mais uma vez, de serem judias. O que está em jogo é a própria dignidade humana. O sionismo é uma epopeia da dignidade humana. Uma boa, uma formosa, uma bela epopeia. E o estado de Israel é uma bela edição em pedra (e em areia, bom... e em campos, e em jardins, e em estradas, e em Universidades...) dessa obra. Sempre suspeitei que o ódio que muitos sentem é pura inveja. Pelo contrário eu, que não creio que nenhum judeu, pelo facto de o ser, seja superior a um goy (tomados uma a um, ora, tomados em conjunto, já é outra coisa), gosto de me recrear na contemplação longínqua dessa beleza.
Ver nota seguinte
(1) Com o correr do tempo, três dos seus membros virão a participar na fundação de The New York Stock Exchange, a Bolsa de Nova Iorque. Isto pode ajudar para alimentar a teoria da grande conspiração judia. Ora, também pode interpretar-se assim: o Imperador Adriano, o Mahdi Ibn Tumart, os Reis Católicos e Dom Manuel I de Portugal participaram na criação da Bolsa de Nova Iorque! Judeus antes expulsos de Recife, antes expulsos de Portugal, antes provavelmente expulsos de Espanha, antes provavelmente expulsos de Al-Andalus, antes expulsos de Israel pelos Romanos, criaram a Bolsa de Nova Iorque, que hoje em dia tem mais peso no mundo que os Impérios Romano, Almóada, Espanhol e Português juntos. Novas vagas de judeus, a fugirem do Império Czarista neste caso (e a procurarem refúgio nesta cidade precisamente porque, graças àquelas outras intransigências, já existia ali uma comunidade judia firmemente estabelecida), colaboraram para a tornar uma comunidade maior e mais influente. Os agentes do ódio não cessam de repetir: “Olhem como os judeus sempre estão no cume!”. Mas não nos dizem que foi o ódio que os empurrou até ali. Estas histórias são de judeus sobreviventes: Shearit Yisrael, “O que fica de Israel”. Não se fala daqueles que ficaram, mas no caminho. Não conseguiram chegar mais judeus “ao cume” que cristãos, muçulmanos ou budistas. É que ficaram mais no caminho. À diferença dos outros, só os que conseguiram chegar ao cume é que sobreviveram. Ó anti-sionistas, ó anti-semitas: deixem 2.700 anos em paz Israel e verão como a taxa de prémios Nobel judeus acaba por ser a média!